Fellet com Fritas: Ainda sobre a quarentena

27 maio | 1 minuto de leitura
Foto: Dudu Mazzei

Costumo comer duas maçãs por dia e, toda vez que jogo as sementes fora, fica a sensação de que interrompi a árvore genealógica de uma comunidade inteira de maçãs. 

Tenho o hábito de ingerir diariamente dois ovos também. Ao quebrá-los, penso em como a natureza se comporta como uma linha de montagem perfeita, materializando o amarelo da gema e o branco da casca em um objeto com imensa precisão arquitetônica. 

Mas, por um momento, lembro que ele é uma vida que não vingou, uma menstruação. E novamente me vejo conivente com um processo de interrupção. Bom, a maçã e o ovo foram o pretexto para outra questão; de caráter mais antropológico. 

Se, no passado, usando o próprio corpo como veículo e instrumento, íamos à caça de alimentos que garantissem a sobrevivência, quem são os caçadores contemporâneos que entregam a subsistência pronta ou semipronta na porta de nossa casa? 

Durante a quarentena, a paisagem urbana tem sido dominada por motoentregadores a serviço de aplicativos de delivery de comida e esses trabalhadores desempenham o papel justamente dos caçadores modernos que colocam a própria integridade em risco para nos trazer a sobrevivência. Eles, porém, representam a parte do nosso sustento que vemos a olho nu. 

Há tantos profissionais soterrados em locais que nossos sentidos não alcançam, mas que afetam diretamente nossa rotina. É gente que faz dupla jornada na fábrica para os itens de higiene pessoal abastecerem nosso lavabo a tempo e a hora. É quem mantém a farmácia provida de analgésico para salvar nosso dia daquela dor de cabeça bloqueante. É o músico que, depois de um período solitário, produz melodias que ironicamente nos tiram da solidão. 

A propósito, um morador de rua veio me pedir um trocado no sinal usando máscara. Apesar de todo o abandono daquele corpo que ainda sai à caça da sobrevivência diária, o instinto de autopreservação o acompanha. Talvez com a esperança de um dia tirá-lo de seu isolamento de outros tempos e colocá-lo de novo em comunhão com nosso tempo (e com a quarentena desta geração).