Fellet com Fritas: Diário de Princesa
Por Carolina Fellet
Nos livros de receitas, a culinária mais parece um diário de princesa: quiche Lorraine, banho-maria, fava de baunilha, morangos flambados ao creme chantilly, ovos nevados. Na vida como ela é, porém, a cozinha é inóspita: facões, fogo, água fervente, fumaça tóxica, queimadura, corte, sudorese excessiva, temperatura subsaariana, instrumentos de tortura ligados a 220 volts esquartejando legumes, frutas, verduras. Ah, e o timer programado para o prato sair a contento é o das perseguições policiais.
A delicadeza de um naked cake acoberta a exaustão da cozinheira e os trabalhos colaterais do preparo do bolo, feito os pés deformados da bailarina subestimados pela leveza da coreografia. A massa leve do pão do café da manhã é descendente direta do trabalho braçal do padeiro que despertou antes do galo, coitado!
A omelete que comemos na dieta matinal parece tão inofensiva. Mas ela é um feto que não vingou. Toda a fauna que ingerimos na churrascaria foi para o abatedouro sofrendo e a gente mastiga e engole todo esse sofrimento, dando risadas, confessando as expectativas mais triviais para o dia corrente. Adoro omelete e churrasco. Tenho uns dentões de predador e me sinto tão animalesca por isso. Para compensar esta minha barbárie alimentícia, procuro jejuar vez ou outra, mesmo ciente da inconsistência da ação.
Confrontando tudo isso, alimentar-se é, por natureza, sagrado. Não só pela sobrevivência. Mas porque a língua e o céu da boca decodificam o mistério do paladar de cada ingrediente. E uma comunicação sublime ocorre no corpo, me fazendo sentir um pouco menos animalizada e mais conectada com o divino.