Fellet com Fritas: A quarentena de 2020

01 abr | 2 minutos de leitura
Foto: Dudu Mazzei.

Até o Covid-19 pôr o mundo inteiro em quarentena compulsória, eu nunca havia tido problema com isolamento. Pelo contrário, quantas vezes esperei ansiosamente uma visita ir embora para voltar ao casulo e escrever mais um capítulo do meu livro de não ficção que, se Deus quiser, sai ainda este ano.

Mas um confinamento obrigatório e em escala global vai muito além da minha coordenada geográfica no espaço e do meu desejo egocêntrico de materializar a criatividade em horário nada comercial.  

O novo coronavírus, quando decidiu partir em expedição para recolonizar o mundo, ignorou as hierarquias étnicas muito bem demarcadas nos aeroportos. Neles placas de localização e filas prioritárias privilegiam norte-americanos e europeus e subestimam os outros povos. Pois não é que o vírus infringiu os protocolos aeroportuários e se alastrou pela Terra com mais rapidez que a informação em tempos de Quarta Revolução Industrial? 

Com a pandemia, passamos a viver em cidades-fantasma, onde as construções foram subitamente esvaziadas de suas histórias, auras e de sua população nativa. Agora a paisagem urbana são só imóveis sem serventia entregues às oscilações do tempo e a uma ciscada ou outra de um grupinho de pombas. Juiz de Fora de repente virou uma maquete empoeirada jogada num canto pouco iluminado do globo terrestre. 

Se com a perspectiva da atualidade, a gente consegue avistar esse cenário, mais para frente, quando os efeitos do Covid-19 estiverem todos mapeados, na certa muitas mudanças antropológicas vão fazer parte dos passos de quem viveu um fenômeno histórico que talvez se repita daqui a cem anos – intervalo que separa a gripe espanhola do novo coronavírus.

No jornalismo televisivo, as transformações decorrentes da pandemia são evidentes. Os entrevistados ficam a cerca de 1,5 metro de distância do entrevistador; isso quando não passam as informações de casa através de vídeos caseiros. A relação patroa X empregada doméstica também mudou. Mulheres de classe média com suas unhas em gel tiveram de submetê-las à lavação de louças e à vassoura. Descobriram, finalmente, que as casas que habitam não são autolimpantes.  

Quando a quarentena acabar, a mortandade e o período de privação talvez levem as sociedades a repensar na ideia de felicidade. Se até agora ela precisava de um exoesqueleto para funcionar – seja através de um carro novo, da roupa da moda, de filhos bem nutridos ou de um namorado cheio de músculos e tão alto quanto um arranha-céu –, no pós-coronavírus, quem sabe ela, a felicidade, será entendida como um fenômeno interno e gratuito. Como um vírus.