Milícias e a interferência na sociedade, comunidade e política

29 abr | 15 minutos de leitura

Apesar de ter se tornado mais popular nos últimos anos, especialistas afirmam que a milícia teve origens na década de 1970, a partir de influências da ditadura militar. Hoje, a milícia atua em 26 bairros do Rio de Janeiro e 14 cidades do estado carioca. Somando tudo, eles comandam uma área com mais de 11 milhões de pessoas.

Muitos só conheceram a milícia através do filme brasileiro Tropa de Elite, quando o diretor José Padilha e o ator Wagner Moura abordaram a realidade carioca de forma escancarada.

Milícias e a interferência na sociedade, comunidade e política
Cena do filme “Tropa de Elite 2: O Inimigo Agora é Outro

Milícias e a interferência na sociedade, comunidade e política

 

A milícia começou com grupos de pessoas, que atuavam como policiais militares, bombeiros e agentes penitenciários que faziam patrulhas contra traficantes de comunidades e tinham o objetivo de ajudar a população que morava e trabalhava nos locais. Geralmente, estavam presentes em comunidades que o Estado não atuava nem fornecia serviços básicos, como a própria segurança pública.

A milícia, então, buscava garantir esses direitos, inclusive segurança, e eram pagos para isso, mas o dinheiro saía direto do bolso do morador. Tudo isso foi modificado quando a própria milícia se tornou o crime organizado das comunidades.

 

Como tudo começou e mudou

José Cláudio Souza Alves é sociólogo, ex-pró-reitor de Extensão Da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e estuda as milícias há 26 anos. Ele conta que as organizações estouraram na época da ditadura militar, surgindo, em 1967 a Polícia Militar nos moldes atuais de força ostensiva e auxiliar aos militares naquela época. Com isso, surgiram os esquadrões da morte.

No final dos anos 1960, as milícias surgiram como grupos de extermínio compostos por Policiais Militares e outros agentes de segurança que atuavam como matadores de aluguel. Durante os anos 70 esses esquadrões vão funcionando a todo vapor, e aos poucos vão aparecendo civis como líderes dos grupos, mas sempre com relações aos agentes do Estado.

Já nos anos 1990, os integrantes dos esquadrões começaram a se eleger como prefeitos, vereadores e deputados. De 1995 até 2000, as milícias foram associadas a ocupações urbanas de terras. A partir dessa data, os integrantes das milícias passam a ser como hoje, policiais militares, policiais civis, bombeiros, agentes de segurança.

A área de atuação também se ampliou. Antes a milícia se vendia como um grupo que iria proteger a comunidade do tráfico e aos poucos foram percebendo que podiam lucrar com cobranças de taxas e venda de serviços e bens urbanos. A milícia, então, passou a atuar como um grupo que protegia a comunidade do tráfico e violência, além de fornecer diversos serviços.

Como eles supriam  as necessidades dos moradores e substituíram o Estado nessas funções, eles começaram a ter outras atividades, como:

 

Cobrança da taxa de proteção: marcavam com símbolos as casas dos moradores que pagavam por proteção a qualquer crime, como roubo ou venda de drogas;

Exploração clandestina: cobravam por serviços de gás, televisão a cabo, máquinas caça-níqueis, crédito pessoal, imóveis e transporte alternativo;

A milícia garantiu a segurança e vários serviços às comunidades, por isso, ganharam a aprovação dos moradores e elogios das autoridades públicas, como de Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), enquanto ainda era deputado estadual. Ele promoveu homenagens a sete companheiros de batalhão do ex-capitão da Polícia Militar Adriano Magalhães da Nóbrega, apontado pelo Ministério Público do Rio (MP-RJ) como chefe da milícia do Rio das Pedras e do chamado “Escritório do Crime”, grupo miliciano suspeito de estar envolvido no assassinato de Marielle.

Hoje, eles garantem segurança e serviços a população desde que os moradores paguem por isso, se não pagar, não está seguro. De acordo com um morador de uma área tomada pela milícia no Rio de Janeiro, em entrevista ao programa Conversa com Bial, no dia 17 de abril de 2019, não existe não pagar alguma taxa nas áreas tomadas por esses grupos.

José Cláudio Souza Alves, em entrevista à Revista Pública, ele afirma: No Rio de Janeiro a milícia não é um poder paralelo. É o Estado. São formadas pelos próprios agentes do Estado. É um matador, é um miliciano que é deputado, que é vereador. É um miliciano que é Secretário de Meio Ambiente. Sem essa conexão direta com a estrutura do Estado não haveria milícia na atuação que ela tem hoje,” explica José Cláudio.

O sociólogo ainda diz que as milícias atuam em outros serviços, como a venda de combustível adulterado. “Lá em Duque de Caxias, eles roubam petróleo dos oleodutos e fazem mini destilarias nas casas das pessoas. Tudo ilegal, com um risco imenso. Aí vendem combustível adulterado. Eles fazem aterros clandestinos no meio daquela região com dragas e tratores e vão enterrando o lixo de quem pagar. É mil reais por caminhão. Não importa a origem. Pode ser lixo contaminante, lixo industrial, lixo hospitalar. Eles fazem aterros clandestinos nesta região”, explica José Cláudio.

Além disso, o sociólogo aponta que as milícias têm o poder de vender votações inteiras de comunidade. “Eles fecham pacote. Eles têm controle preciso de título de eleitor, local de votação de casa título de eleitor, quantos votos vai ter ali. Eles são capazes de identificar quem não votou neles”, explica José Cláudio.

 

A tortura a jornalistas

Foi em 2008 que um grupo de milicianos torturou dois repórteres e um motorista do jornal O Dia que investigavam a ligação entre a milícia da comunidade do Batan e candidatos a cargos públicos. 

Um dos repórteres torturados é o fotográfico Nilton Claudino, conhecido como Índio, que revelou com precisão como tudo aconteceu a Pedro Bial, pela primeira vez desde que passou pelas mãos da milícia.

Durante a entrevista, Índio confessa ter sido apaixonado pela aventura, que o jornal e a rotina dos funcionários era monótona quando não tinha tiroteio no Rio de Janeiro, sendo que seu trabalho era acompanhar a ação da polícia durante esses eventos. 

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Fotográfico Nilton Claudino, conhecido como Índio, em entrevista ao programa Conversa com Bial

Na entrevista, Índio conta que uma repórter e ele moraram por duas semanas em uma comunidade disfarçados de moradores. Lá, viviam uma rotina comum. Ela ia a igreja e ele ao bar. Um certo dia, a milícia os identificou e eles foram torturados.

O fotógrafo conta que sabia que estava nas mãos da milícia, pois conseguia ver pessoas de coturno e identificou o barulho dos carros que, segundo ele, fazem o mesmo barulho e são perceptíveis.

Pedro Bial perguntou a Nilton o motivo dele não ter sido morto pela milícia. Nilton, que afirma ser muito religioso, conta que não tem outra explicação a não ser Deus, seu anjo da guarda ou qualquer outra coisa que tenha ligação com sua fé.

O caso envolvendo Índio e a jornalista inspirou uma cena do filme “Tropa de Elite 2: O Inimigo agora é outro”. A jornalista Clara e o fotógrafo se passam por moradores para investigar a atuação da milícia no bairro Tanque. Eles descobrem que o material de campanha do governador está sendo guardado pela milícia, porém são surpreendidos por homens armados, que na verdade, são os milicianos. Entretanto, o fotógrafo e a jornalista da ficção foram mortos, o que geralmente acontece. No caso de Índio, a morte não chegou, mas o trauma permaneceu eterno.

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Personagem da jornalista Clara, flagrada e morta por milicianos. Tanto ela, como o fotógrafo, foram baseados em fatos reais.

CPI das Milícias

Após o escândalo da tortura aos jornalistas, mais de 1.100 integrantes da milícia foram presos, entre eles 219 policiais militares, um deputado estadual e 7791 civis, segundo dados da Secretaria de Segurança Pública do Rio.

Em 2008 foi concluída a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das Milícias na Assembleia do Rio, liderada pelo deputado federal Marcelo Freixo, que desde então sofre ameaças de morte. A CPI indiciou mais de 250 pessoas, mas não perdeu a força. Segundo Freixo, as autoridades se concentram em prender, mas não em cortar suas fontes de renda.

A atuação de Marcelo Freixo também inspirou um personagem no segundo filme “Tropa de Elite”. O deputado Diogo Fraga, interpretado pelo ator Irandhir Santos, foi inspirado no trabalho de Freixo, como militante dos direitos humanos e a luta contra a milícia.

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Personagem Diogo Fraga foi inspirado em Marcelo Freixo

 

O verdadeiro Capitão Nascimento

Rodrigo Pimentel é o verdadeiro Capitão Nascimento, interpretado por Wagner Moura. Ele se tornou capitão do Bope em 1995 e escreveu o livro “Elite da Tropa”, que serviu de inspiração para o filme de Padilha. Sua personalidade também serviu de inspiração para a construção de Nascimento.

Em entrevista à Superinteressante, Rodrigo Pimentel afirma que a única coisa que é ficção em Tropa de Elite 2 é o conflito familiar de Nascimento. “O dilema familiar do Nascimento e sua sua relação com o filho, com a ex-mulher são fictícios. Mas todas as histórias que envolvem as milícias foram baseadas em fatos reais, que acontecem no cotidiano do Rio”, explica Pimentel.

Ele também cita uma cena, em específico, que foi inspirada em fatos reais. “Aquela cena do filme, na qual o miliciano assassina uma pessoa sem nem abrir a porta do carro é um deles. Aqui no Rio de Janeiro, um miliciano chamado Félix [Tostes, policial civil acusado de envolvimento com milícias] morreu exatamente da mesma forma. Uma picape encostou ao lado do carro dele e os ocupantes efetuaram disparos através da porta, usando um fuzil AK-47. O projétil de fuzil tem capacidade de perfurar até blindagens. E quem está ao lado não entende nada, ninguém vê o bandido saindo do carro, ninguém vê o bandido avançando contra o alvo”, conta Rodrigo Pimentel.

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Rodrigo Pimentel serviu de inspiração para construção do personagem Capitão Nascimento.

Rio das Pedras

Ela é conhecida por ser uma favela tranquila, apesar de ser a terceira maior do Rio de Janeiro, ficando atrás de Rocinha e Maré. Rio das Pedras não costuma frequentar o noticiário por disputas entre facções criminosas e entre criminosos e policiais.

Entretanto, após o assassinato de Marielle Franco, a comunidade ficou ainda mais famosa. Como falamos anteriormente, investigações apontam que a sede do Escritório do Crime seja a comunidade, pois foram encontradas imagens que mostra o carro usado no crime trafegando por ruas de Rio das Pedras.

De acordo com o sociólogo José Cláudio de Souza Alves, a milícia chega dizendo que vai levar paz à comunidade, mas isso tem um preço. “Esse preço é a taxa de segurança imposta a moradores e comerciantes. Quem se opõe, é morto. Depois, as milícias percebem que podem criar um negócio maior e ampliam o portfólio de suas atividades”.

O Sociólogo acredita que o fortalecimento da milícia em Rio das Pedras tem ligação com o acelerado crescimento populacional da favela e a demanda por terras. “É uma comunidade que se expande muito rápido, tem um mercado imobiliário pujante. A milícia tem acesso ao mapa da região e começa a ver onde pode montar negócios, ocupar o solo urbano, é um grande negócio”, explica Alves.

 

A população de Rio das Pedras

A BBC Brasil conversou com alguns moradores da comunidade. Muitos contam que sabem que Rio das Pedras é controlada por milicianos, que é comentado em conversas, mas que não lidam diretamente com eles e isso não afeta as atividades dos moradores. Mas eles conseguem perceber quando a milícia agiu.

 

“Às vezes a gente fica sabendo que alguém fez alguma coisa errada, roubou, vendeu droga ou algo assim, e aí essa pessoa some”.  

 

“Uma vez, era cedo de manhã, vi dois homens numa moto atirarem nos pés de outro homem que estava em pé em frente a um bar. Aqui é assim, eles avisam uma vez, duas vezes, na terceira te pegam”.

 

“Não tem gente armada na entrada e nas ruas que nem em outros lugares. Se pudesse, me mudaria para um bairro melhor, mas tenho amigos que moram em favelas como a Rocinha e sei que a vida deles é mais difícil. Eles passam noites em claro ouvindo tiroteio, às vezes não sabem se podem sair de casa para o trabalho. Aqui pelo menos não tem isso”.

 

Muzema

A comunidade da Muzema ficou nacionalmente conhecida no dia 12 de abril, quando dois prédios desabaram e 24 pessoas morreram. Os prédios, localizados no bairro do Itanhangá, na Zona Oeste do Rio, foram construídos pela milícia, segundo a prefeitura.

Segundo investigações do Ministério Público, o chefe da milícia na região é o major Ronald Paulo Alves Pereira, preso no início do ano, sendo um dos alvos da operação “Os Intocáveis”. A Polícia Civil abriu inquérito para investigar a participação de Alclécio Cardoso. De acordo com investigadores, ele confessou ter assumido a cobrança das taxas de segurança na comunidade, após a prisão de Ronald.

A região onde os prédios foram erguidos é Área de Proteção Ambiental e os dois eram irregulares, conforme a Prefeitura do Rio. As obras dos prédios e em outras construções chegaram a ser interditadas no final de 2018.

A prefeitura informou que a fiscalização na área é complicada pelo fato de ser dominada por milícias. “Os técnicos da fiscalização municipal necessitam de apoio da Polícia Militar para realizar operações no local”, diz a nota da prefeitura.

Além da falta de fiscalização e construções irregulares, a região da Muzema foi uma das mais afetadas pelas enchentes no início de abril no Rio de Janeiro.

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Imagem retirada do site: deskgram.net

 

A população da Muzema

Em entrevista a TV Globo, um morador da comunidade disse que a milícia invade os terrenos, constroem prédios e saem logo vendendo. As construções podem chegar a até 10 andares, sem licença e sem segurança alguma.

Os moradores da Muzema foram ouvidos pela BBC Brasil e afirmam ter de pagar valores mensais de aproximadamente R$ 100 aos milicianos. Essa quantia varia de acordo com o número de habitantes da casa.

Como contam os moradores, os prédios na região onde aconteceram os desabamentos, foram erguidos em cerca de dois anos. Antes, o local era uma área verde no meio do condomínio, uma mata de quase mil metros quadrados que foi cortada para dar lugares a mais prédios.

De acordo com os moradores, os imóveis costumam ser vendidos a partir de um pagamento de uma entrada, com valores que variam entre R$ 30 mil e R$ 60 mil. O imóvel é vendido com a estrutura e a fachada concluídas, mas os acabamentos internos ficam por conta do morador.

 

Pesquisa revela o medo da população

Uma pesquisa do Datafolha, encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, divulgado pelo portal O Dia, em fevereiro de 2019, revela que moradores das comunidades cariocas e de bairros da Zona Sul do Rio de Janeiro tem mais medo das milícias do que de traficantes e da polícia.

Quando questionados se tinham mais medo de traficantes, milicianos ou policiais, 29% dos entrevistados nas comunidades responderam que temiam as milícias, 25%, o tráfico, 18%, a polícia e 21% todos na mesma proporção.

Ainda de acordo com o estudo, 38% dos moradores da Zona Sul do Rio, onde se concentram os bairros mais ricos da cidade, temem a milícia. Outros 20% os traficantes, 12% a polícia e 24% todos.

Milícias e a interferência na sociedade, comunidade e política
Imagem retirada de filme “Tropa de Elite 2: O Inimigo Agora é Outro”

Entretanto, o estudo considera, também, o número total dos entrevistados em toda a cidade e revela que 34% dos moradores tem mais medos dos traficantes que formam facções criminosas, 27% têm medo dos milicianos, 12% possuem medo da polícia e 22% temem todos. Outros 5% não souberam ou não quiseram responder.

De acordo com Renato Sérgio de Lima, presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o temor da população em relação às milícias têm ligação direta com a expansão desses grupos no Rio. “As milícias rivalizam diversos territórios com o tráfico. Daí o medo das pessoas. A milícia deixou de ser um problema só da Zona Oeste para ser um problema que se espalhou para várias regiões“, afirma.

Mas engana-se quem pensa que milícia só existe no Rio de Janeiro. De acordo com dados levantados pelo Ministério dos Direitos Humanos (MDH) a pedido do portal Metrópoles, revelam denúncias de atuação de grupos milicianos em outros estados do país, entre os anos de 2016 e 2017. Confira:

São Paulo: 4 denúncias;

Pará: 5 denúncias;

Rio Grande do Norte: 5 denúncias;

Minas Gerais: 8 denúncias;

Bahia: 8 denúncias;

Espírito Santo, Alagoas, Tocantins, Paraná, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, Amazonas e Rondônia apresentaram apenas 1 denúncia.

 

Com isso, notamos que o assunto “milícia” não é exclusivo das cidades cariocas, pode andar ao lado do governo e, claro, amedronta a população.