BLACKFACE: o assunto que já passou pela moda, música e até carnaval

20 fev | 14 minutos de leitura

Afinal, blackface pode ser considerado racismo?

 

No começo do século 19, nos Estados Unidos, o teatro se deparou com uma nova forma de caracterização. Os atores, que tinham a pele branca, usavam carvão para pintar seus rostos de preto, com exceção dos olhos e boca. Essas partes eram realçadas com tinta vermelha.

Um dos motivos para isso era que os negros não eram permitidos a participarem das peças teatrais, sendo representados de forma caricata. Essa representação ficou popularmente conhecida como blackface.

Blackface - Prática comum no século 19, hoje é vista como racismo

BLACKFACE: o assunto que já passou pela moda, música e até carnaval

Os atores reforçavam os esteriótipos dos negros, do comportamento e da comunidade afro-americana. Segundo historiadores, o blackface tinha apenas o objetivo de ser engraçado para os ricos brancos donos de escravos, com a única finalidade de ridicularizar os negros, e também imigrantes, como italiano e holandeses. 

Nessa época foi criado o personagem Sambo, que é pouco conhecido no Brasil. O personagem tem origem no livro “A História do Pequeno Negro Sambo”, de 1898, da escritora Hellen Bannerman.

A história foi absorvida pela cultura americana, como símbolo de malandragem, preguiça e ridicularização. O boneco golliwog, que chegou a ser proibido no Reino Unido, também fez parte dessa cultura.

Blackface - Livro “A História do Pequeno Negro Sambo” fez parte desse momento
Livro “A História do Pequeno Negro Sambo”

Durante os anos de 1840 a 1890, esse tipo de performance nos shows era o entretenimento mais popular da América do Norte, se tornando um estilo próprio de manifestação artística dos EUA.

Mas a partir de 1960, a prática do Blackface começou a declinar à medida que o movimento de direitos civis dos negros começou a crescer no país.

 

Blaxploitation

O Blaxploitation foi um gênero do cinema que se popularizou nos anos de 1970, nos Estados Unidos. Na verdade, o Blaxploitation foi mais que um gênero, e sim um movimento social. Foi um cinema feito por negros para negros.

No fim dos anos 60, o movimento Black Power estava dominando os Estados Unidos e o próprio governo estava em busca de políticas que envolvessem o país como um todo.

Junto com isso, os grandes estúdios de cinema estavam em declínio e os grandes favorecidos foram os pequenos produtores, que começaram a inovar a produção.

Os produtores, que em sua grande maioria, eram negros, além de não se sentirem representados no cinema, eles perceberam que a produção de filmes voltados para a população negra tinha muito potencial.

Com isso, eles resolveram fazer filmes que eram: escritos, produzidos e estrelados, principalmente, por negros. E o mais legal: a trilha sonora continha soul, funk americano e black music.

 

O primeiro filme do Blaxploitation

O primeiro título que fez parte do Blaxpoitation foi “Sweet Sweetback’s Baadasssss Song”, escrito, produzido, dirigido e estrelado por Melvin Van Peebles. Segundo contam, Melvin também editou e cuidou da trilha sonora do filme.

Hollywood também se rendeu e produziu o filme Shaft, de 1971. A produção foi um sucesso de bilheteria e público, mostrando para as grandes produtoras que o público negro queria ser representado nas telas de cinema.

Depois desse grande sucesso, os produtores começaram a gravar diversos sucessos do cinema estrelados por negros. Desse movimento, surgiram: Blacula (1972), The Black Goodfather (1974), King George (1973), além do musical “O Mágico Inesquecível”, de 1978, que foi inspirado em “O Mágico de OZ”, porém sendo todos os atores negros.

 

Blackface no cinema

O filme “A Cabana do Pai Tomás”, de 1903, é um dos primeiros registros do uso do blackface no cinema. Na produção, todos os personagens importantes eram interpretados por atores brancos, mas representando negros, pintando o rosto e o corpo de preto.

Um outro filme que utilizou a blackface foi “O Nascimento de uma Nação”, de 1915. A produção contou com atores brancos com os rostos pintados de tinta preta para representar os personagens negros.

A história se passa após o fim da Guerra Civil norte-americana, sendo que os negros representavam os vilões, tomando o poder, fraudando e aprovando, o que seria absurdo na época, o casamento inter-racial. No fim, o mocinho é o homem criador da Klu Klux Klan.

Blackface - Filme "O Nascimento de Uma Nação"
Filme “O Nascimento de Uma Nação”

O primeiro filme sonoro foi “O Cantor de Jazz”, de 1927, e nele havia também blackface. O ator Al Jolson passa boa parte da história fantasiado de negro. Blackface - Filme "O Cantor de Jazz", de 1927

 

Blackface na televisão

 

A Feiticeira

Em 1970, o programa de TV “A Feiticeira” pintou os rostos dos atores para condenar o racismo. Na época, o blackface era combatido pelo blaxploitation e o programa exibiu um episódio com uma história comovente, idealizado por alunos da periferia de Los Angeles.

O capítulo recebeu um prêmio no Emmy do ano seguinte e é o preferido de Elizabeth Montgomery, a protagonista. Blackface - Programa "A Feiticeira" usou a prática para pregar contra o racismo

 

Blackface na moda

 

Katy Perry Collections

A cantora Katy Perry tem uma linha de sapatos e bolsas, a Katy Perry Collections. Em fevereiro de 2019, a cantora foi acusada de produzir um modelo de sapato que reproduzia a blackface. Katy e a equipe da empresa Global Brands Group tirou a linha do ar e em seguida, a cantora disse: “Nossa intenção nunca foi infligir qualquer dor”.

O sapato em questão, possui olhos azuis, nariz e lábios vermelhos para criar uma representação facial. Segundo a cantora em uma entrevista à revista People, a linha “The Rue and The Ora”, fazia parte de uma coleção que foi lançada no último verão em nove cores diferentes (preto, azul, ouro, grafite, chumbo, nude, rosa, vermelho e prata). Ele foi concebido como um aceno para a arte moderna e o surrealismo.

No comunicado, a cantora disse: “Fiquei triste quando me chamou a atenção que estava sendo comparado a imagens dolorosas que lembram blackface. Nossa intenção nunca foi infligir qualquer dor. Nós os removemos imediatamente do site”.Blackface - Katy Perry Collections foi acusada de fazer sapatos utilizando blackface

 

A blusa de gola alta da Gucci

A marca italiana Gucci vem sendo acusada de racismo desde o lançamento de uma blusa de gola alta, comercializada para o inverno do hemisfério norte.

O produto é uma blusa na cor preta, com a gola decorada com uma fenda vermelha, cobrindo parte do rosto e reproduzindo uma grande boca vermelha.

O motivo da polêmica foi justamente a fenda vermelha, aumentando o tamanho da boca, deixando-a mais carnuda. Os internautas perceberam na peça uma referência ao blackface.

O fato tomou maiores proporções quando o rapper 50 cent postou em sua conta no Instagram um vídeo queimando uma camisa da marca. Ele também afirmou que não apoia mais a marca.

O rapper T. I. também falou sobre a questão: “Como um cliente que consome sete dígitos e um apoiador de longa data da sua marca, eu devo dizer: vocês fod***m com a gente. Desculpas não aceitas. Nós não iremos aceitar esse ‘ops, foi mal, não era nossa intenção ser racista’”, escreveu T.I. no Instagram.

Já o também rapper Soulja Boy, que possuía uma tatuagem do logo da marca em sua testa, afirmou que começou a remoção da tatuagem.

A Gucci informou que a blusa era inspirada em máscaras de esqui vintage, mas como a repercussão foi grande, a marca não demorou para tirar o produto do ar, que custava cerca de US$ 890.

Em comunicado pelo Twitter, a marca disse: “Gucci pede desculpas pela ofensa causada por este suéter. Confirmamos que o produto foi imediatamente retirado de todas as nossas lojas e do nosso site online”.Blackface - Marca italiana Gucci teve que retirar um produto do ar por causa de blackface

 

O chaveiro da Prada

No final de 2018, a também italiana Prada, lançou o personagem Otto Toto, da coleção Pradamalia. A marca foi acusada de blackface, pois o chaveiro, aparentemente inspirado na figura de um macaco, é marrom e tem grandes lábios vermelhos, o que representaria um estereótipo racista.

Em comunicado, a marca disse que a semelhança dos produtos ao blackface não foi intencional e recolheram os produtos. “De agora em diante, nós juramos melhorar nosso treinamento em diversidade e vamos imediatamente formar um conselho consultivo para guiar nossos esforços de diversidade, inclusão e cultura”.

Em resposta as ações das marcas Prada e Gucci, o diretor Spike Lee afirmou que não vai mais usar produtos das marcas até que elas contratem mais designers negros.

Pelo seu Instagram, Lee escreveu: “É óbvio para as pessoas que elas não têm ideia em relação a imagens racistas e blackface. Acordem. As grifes precisam de profissionais negros dentro do escritório quando essas coisas acontecem”, disse.

O diretor ganhou destaque na mídia ao defender os direitos e contar sobre a história de racismo, como no filme “Bamboozled”, traduzido como “A Hora do Show” e também Infiltrado na Klan. Blackface - Marca italiana Prada teve que retirar um produto do ar por causa de blackface

 

A Vogue com Gigi Hadid

Eita que a Itália está dando o que falar. A Vogue italiana, em março de 2018, recebeu críticas quando a edição do mês, com a capa estrelada pela modelo americana Gigi Hadid, chegou nas bancas.

A polêmica foi o tom da pele de Gigi, pois estava mais escura que o normal. Muitos internautas questionaram a revista, pois se a ideia era ter uma pessoa com a pele escura na capa, teria sido melhor escalar uma modelo negra para isso.Blackface - Vogue Itália usou blackface em modelo Gigi Hadid

 

Blackface na música

 

Mariano e Michel Teló

Em 2015, uma “corrente” no Instagram envolveu o cantor Michel Teló e Mariano, da dupla Munhóz e Mariano.

Os cantores aparecem com metade do rosto pintado com tinta preta. Na legenda de Teló estava escrito: “Contra todo e qualquer tipo de preconceito. Linda iniciativa do meu amigo Charles, tamo junto, companheiro! Convido meus companheiros Belutti, Fernando e minha gatinha Taís Fersoza a entrarem nessa corrente do bem comigo. Por um mundo mais igual”.

Mas logo após se acusado de blackface, o cantor apagou a publicação e escreveu: “Gostaria de me desculpar pelo ocorrido com a foto postada ontem em meu Instagram. Foi um infeliz mal entendido. A ideia, a causa e a intenção eu mantenho aqui, porque foram de coração. Sou contra todo o qualquer tipo de preconceito, seja racial, sexual, social e religioso”.

Já Mariano, também apagou a foto e em seguida, escreveu: “Peço desculpas se ofendi alguém no post anterior com a campanha contra o racismo, não sabia desse tal de #BlackFace, postei com a melhor intenção possível assim como a campanha foi criada”.Blackface - Cantores Michel Teló e Mariano postaram fotos usando blackface para campanha contra racismo

 

Daniela Mercury no trio elétrico

Em fevereiro de 2017, Daniela Mercury subiu em seu trio elétrico em Salvador, fantasiada (do que chamou) de Deusa de Ébano.

Sua pele estava mais escura e ela usava uma peruca crespa com um penteado black power. A cantora porém, afirmou em seu Instagram que a fantasia era, também, homenagem à cantora Elza Soares.

Muitos comentários acusaram a cantora de fazer uma caricatura, ao invés de exaltar, ela pode desumanizar a pessoa negra, que não pode ser tratada como uma fantasia de carnaval.

Outros internautas questionaram a homenagem. Já que era para Elza Soares, porque não levar a própria para o trio ou até convidar uma mulher negra, ao invés de Daniela se vestir como tal?

Em 2007, a cantora também foi acusada de Blackface, quando se vestiu de Nêga Maluca para a inauguração do camarote que lavava seu nome no Circuito Barra-Ondina. A Nêga Maluca é uma caricatura grosseira da mulher negra, popular no carnaval, e que vem sendo combatida por movimentos negros e de mulheres negras.Blackface - Cantora Daniela Mercury foi acusada de cometer blackface

 

Blackface no carnaval

 

Bateria da Salgueiro

Durante o carnaval de 2018, o desfile da Salgueiro trouxe sua bateria caracterizada de blackface. Muitas pessoas questionaram a escola, alegando que, se era para representar negros, por que não colocar integrantes negros na bateria?

O coreógrafo da escola, Hélio Bejani, disse, em entrevista ao jornal O Globo, que possui liberdade poética para fazer “blackface” e também precisavam de pessoas com “feições mais escuras”, já que o enredo era o afro histórico). Por essas razões, a escola decidiu pintar os integrantes, já que seria necessário atingir o tom certo.Blackface - Escola de Samba Salgueiro foi acusada de cometer blackface

 

Bloco Domésticas de Luxo

Há 61 anos, em Juiz de Fora, Minas Gerais, foi criada a Associação Recreativa e Comunitária Domésticas de Luxo. O grupo que é constituído, em sua maioria de homens brancos, se fantasia com malhas, luvas e tintas pretas, perucas, olhos e bocas destacados.

O grupo, que virou Bloco, começou a receber críticas em meados de 2015, a respeito do possível racismo e blackface realizados com a fantasia. As acusações se agravaram em 2018, quando o grupo desfilou com protestos e cartazes contra o ato.

Já para o carnaval de 2019, alguns grupos da cidade ficaram contra o desfile, alegando que a prática e a fantasia era blackface, desrespeitando as mulheres negras.

O grupo Domésticas de Luxo, para evitar qualquer problema futuro e para não haver confusões durante o bloco, decidiu, junto com a Fundação Cultural Alfredo Ferreira Lage da Prefeitura de Juiz de Fora, responsável pela cultura da cidade, representada pelo superintendente José Américo Mancini, com a Comissão de Igualdade Racial da OAB/JF, representada pelo presidente Alexander Jorge Pires e a Associação Recreativa e Comunitária Domésticas de Luxo, representada pelo presidente Valdir Alves, que em 2019 o grupo não vai adotar as fantasia clássica.

A nova proposta envolve temas anuais e para esse ano, o escolhido é Circo. Os integrantes então, vão sair na rua sem os itens pretos, como malha, luva e tinta.

De acordo com o presidente da Comissão de Igualdade Racial da OAB/JF, a fantasia usada há mais de 60 anos, não tinha características de racismo e preconceito. O presidente da Domésticas de Luxo informou que o grupo também não possui essa ideologia, mas que acreditam que a mudança será boa para a cidade, grupo e integrantes.

O superintendente da Funalfa disse que o grupo faz parte da história cultural da cidade e acredita que a mudança vai beneficiar muitas pessoas.

Os integrantes do grupo tiveram que assinar um termo em que concordam com a nova postura do bloco, com a não distribuição da malha e das luvas (que eram disponibilizadas pelo Domésticas de Luxo – a tinta já não era distribuída por eles) e que assumem a responsabilidade da fantasia que será usada.

O presidente do grupo não informou se vai haver uma punição a quem desrespeitar o novo acordo firmado entre o Domésticas de Luxo, Funalfa e OAB/JF.

Blackface - Fantasias de grupo Domésticas de Luxo teve que ser revista
Foto: Olavo Prazeres
Blackface - Fantasias de grupo Domésticas de Luxo teve que ser revista
Foto: Olavo Prazeres

 

Respondendo a pergunta: Afinal, blackface pode ser considerado racismo?

Sim, a prática do blackface pode ser considerada racismo, pois evidencia os esteriótipos dos negros, pode ser considerado uma forma de exclusão dos mesmos, já que tira o espaço deles em filmes, programas e participações, quando pintam o rosto de alguém.

Como explica Rebeca Campos Ferreira, doutoranda em Antropologia pela Universidade de São Paulo (USP) e Perita em Antropologia, Ministério Público Federal – MPF / RO, o blackface é uma forma de opressão que longe de ser humor, é uma forma racista que, se hoje é mais sutil, não é menos ofensivo. É mais um mecanismo de discriminação. “As linhas entre a arte e o racismo, o humor, a liberdade de expressão e o preconceito são, de fato, bastante tênues. Mas não se pode ignorar que essas performances do blackface desempenharam papel importante em consolidar e proliferar imagens, atitudes e percepções racistas no mundo e não deveriam encontrar adeptos hoje em dia”, explica Rebeca.

Assim como Rebeca, historiadores, pesquisadores e ativistas do movimento negro consideram o blackface uma prática racista.

 

Racismo é crime!

Segundo o artigo 140 do parágrafo 3 do Código Penal Brasileiro, ofender a honra de qualquer pessoa com a utilização de elementos referentes à raça, cor, etnia, religião ou origem pode resultar em ação penal por injúria racial.

Racismo é crime previsto pela Lei 7.716/89 e deve sempre ser denunciado. Para denunciar a prática de racismo, é possível prestar queixa nas delegacias comuns e especializadas em crimes raciais, como a Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância. Pode também usar o disque-denúncias específicos para o crime de racismo.

Já para os crimes de racismo em redes sociais ou sites, é possível comunicar as autoridades diretamente pela rede.

Pode ser denunciado pelos endereços:

Endereços para o envio de denúncias:
http://new.safernet.org.br/denuncie
http://cidadao.mpf.mp.br/