Língua Portuguesa: inculta, bela e nossa.

04 maio | 2 minutos de leitura

Numa obra perto de casa, pregada à madeira frágil do tapume improvisado, ao lado de uma fenda tímida, mal cortada, uma placa pintada a esmalte de unha: proibido colocar cartas.

Olhando para aquela palavrinha moribunda, já fadada ao museu das coisas, ela, que já se moveu pelos mundos afora, ali, insistindo aos olhos espantados, descansa num jazigo perpétuo talvez do que foram folhas e mais folhas escritas um dia pela alma, sempre bem lacradas em envelopes com a goma dos correios, para depois serem abertas avidamente pelo destino.

Compadeço-me, então, do eventual zelador, ele um homem solitário, de voz rouca, apaixonado, vestido de inútil expectativa, esperando as cartas. Por que diacho sua clausura há de ser tão dolorosa?

Pois vinha nesse desvario quando em mim, escancarada, revelou-se a peça que me pregava a cachola. Ludibriado pela danada da ortografia! Não era cartas o que estava escrito lá, mas cartaz! Proibido colocar cartaz. Pronto, pelo menos o zelador não sofre mais.

Ele, não. Mas eu, eu me lembrei dos amores que tive, zelosos com a língua como o homem da obra devia ser com os larápios que atacam à noite; sentinelas adormecidas, porém, que escreviam não raro cartas em dialetos ininteligíveis, pouco escorreitos: era o furor dos libelos, coléricos muitas vezes por um nada, morto sempre no meio do caminho entre o endereçar e o receber. Os sentimentos, porque gritos de paixão, manifestavam-se através de palavras aquém e além do possível. Tortas. Vivas.

Agora com um belo sorriso, lembrou-me ter visto por ali  um muro, outra obra talvez, pintado com garrafais, não á vagas, ao que uma observação arguta, posposta ao escrito, emendava, nem para o h!

Mas o som do ponteiro de um relógio qualquer me vem atrasado, tanto quanto vinham as cartas… ao primeiro suspiro de lamento, escrevo no ar, com dedos imaginários, a palavra horologium, o conhecimento da hora para os latinos.

Não sei, no entanto, por que isso me veio… ah, sim. Como naquele muro, enfática pela ausência, posta no início das horas, silenciosa, esquecida na história da língua de que somos herdeiros, a letra agá, muda da silva, perdeu-se da palavra relógio no tumulto da mutação das línguas, agarrando-se como pode, até fundir-se ao artigo definido, ele que ajuda a pôr realidade nas coisas. Assim: horologium, ho rológio, o relógio. O relógio! Caramba! impérios romanos nos põe sempre a filosofar. Devo tornar a me assentar no mundo. Ponteiro não são silenciosos.

Enquanto corro, não deixo de pensar nos 280 milhões de pessoas que neste momento se esgueiram também em nosso idioma, aqui ou na África, na Índia, na China, em Portugal ou na Indonésia. Quantos não estarão agora tecendo cartas e cartazes, em línguas portuguesas doces e amargas, alguns hesitantes entre macaxeiras, mandiocas, aipins, macambas e castelinhas, entre alguma coisa e cousa nenhuma, entre haver vagas  ou a ver vagas. Quantos não estarão se ajeitando à vida através desse verbo divino que é a Última Flor do Lácio?

Cinco do cinco. Seu dia é sempre. Inculta e bela. Nossa.

 

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